quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Do Bolinha

Esclarecimento: não me enganei ao intitular este texto de "O Bolinha". É mesmo no masculino.

Há muitos anos conheci um bolinha. Andou na mesma turma que eu desde sempre.

Quando chegou à escola, não demorou a aperceber-se que era maior do que os outros meninos (e meninas) todos. Mas tudo bem. Não precisavam todos de ser do mesmo tamanho.

O bolinha era afectuoso, simpático e amigo de toda a gente. Abraçava os menos bolinhas e dava beijinhos em toda a gente. O bolinha era um querido.

Com o passar dos meses e dos anos, não demorou muito a que começassem a haver palavras mais duras para com o bolinha. "Larga-me gordo", "deixa-me gordo", "és gordo e feioso". Ele lá ficava triste e seguia em frente. Procurava afectos e toques e dava tudo o que tinha: os carrinhos que a Mãe lhe dava, a comida que levava e até fazia palhaçadas para os outros rirem. E os outros riam. O bolinha ficava feliz por fazer os outros rir. Não demorou foi muito a perceber que estava a ser gozado. Ficava triste. Mas ao menos gostava da atenção. E até gostava de cantar. E cantava para quem quisesse ouvir. Era o bolinha, gordo, desajeitado e feioso. Mas o bolinha era um querido.

Ao longo do tempo em que estivemos juntos fui-me apercebendo que o bolinha tinha alturas em que era menos bolinha. Ficava mais magrito. O que não o largava era a boa disposição e a vontade de alegrar os outros. Gostava de beijinhos e de atenção, o raio do bolinha. Nem toda a gente estava para os receber e para lhe dar a atenção que ele queria. Mas era um querido.

Depois o bolinha começou a namorar. E tinha sempre medo que as namoradas deixassem de gostar dele por ser bolinha. Tinha medo que o abandonassem. Tinha momentos de ansiedade em que queria tudo ao mesmo tempo. Em que queria que o tempo parasse nos momentos bons para saborear de forma duradoura a aceitação, o carinho e a atenção. E o bolinha era um querido.

Havia grupos giros que se criavam na escola. Mas não deixavam o bolinha entrar. Quando se jogava à bola, ou se escolhia equipas para um qualquer desporto ele era o último a ser escolhido. E mesmo assim, era o guarda-redes. Porque, com esse tamanho, a probabilidade de a bola lhe acertar e não entrar na baliza, era maior. E ele levava pancada ou era insultado quando deixava a bola entrar. E ele pedia desculpa e tentava sempre impressionar e fazer melhor. Que remédio! Ele era um querido.

Apercebeu-se que não era com a actividade física que ia chegar fosse onde fosse. Qua não ia ser alguém por ser bonito. Ia estudar e ser bom aluno. E era. Mas até isso parecia irritar as pessoas que o rodeavam. "Sim. Podes ter grandes notas. Mas, além de gordo, és cromo". E ele era sempre um querido.

Então apercebeu-se que sabia cantar e tinha uma voz porreira. Pensou ele: ora aqui está uma forma de impressionar a malta e de ser aceite. Trabalho que se fartou, melhorou o dom que tinha e tentou de todas as formas chegar ao coração das pessoas e ser aceite. Mas, apesar do talento, havia sempre outros que, mesmo sendo piores, eram menos bolinhas. Por ser um querido, ajudou toda a gente, mesmo prejudicando-se aqui e ali. Trabalhou de borla e levantou-se a meio da noite para ir ajudar alguém. Para ser aceite, para ser gostado, para se integrar.

O bolinha cresceu, trabalhou, deu atenção e carinho a quem merecia e a quem não merecia. Mas agora já era inseguro e desconfiado. Pudera! Depois de tanta tentativa sem conseguir o que queria, tentava proteger-se esperando sempre o pior dos outros. E o que viesse de bom, era lucro. Criou um certo mau feitio. Mas era, sempre, um querido para toda a gente.

Ainda hoje o bolinha desvia-se do seu caminho para fazer os outros mais felizes. Tem atenções com as pessoas que muito pouca gente tem. Entrega-se, dá-se e faz trinta por uma linha para agradar, numa esperança secreta que, um dia lhe agradem. Que tenham gosto em agradar-lhe. Que haja alguém que, um dia, viva para ele, o ame para sempre e não o abandone. Que, fazendo alguém feliz, possa também ser feliz. Apesar de ser bolinha, de ser desconfiado e meio inseguro. Porque ele é, essencialmente, um querido.

Ainda há dias estive com ele. Está menos bolinha e trabalha que se farta. É um gajo porreiro, um bom Homem. Ainda lhe perguntei: "Oh rapaz, já não está na altura de pensares mais em ti e de te teres em melhor conta?". Dizia-me ele: "Sim. Mas sabes como é: gosto de gostar das pessoas, de sorrisos, de palmas, de calma, de atenção e de coisas boas. E agora, como já fica mais difícil mudar, vou ser assim, sempre". E passou anos a ajudar, a dar, e a ser... para os outros.

Fiquei orgulhoso do agora menos bolinha. Porque se todos fôssemos um bocadinho mais como ele, a Vida seria, seguramente, melhor.

Ao vê-lo ir embora fiquei apenas com um ligeiro aperto no peito. Porque algo me diz que ele vai "morrer na praia" muitas vezes na vida. Vai chegar em segundo, em terceiro ou em último. E mesmo assim não me falou mal de ninguém. Não tem mágoas nem arrependimentos. E continua um querido. Um Amor de pessoa. :-)

Beijos & Abraços,

MP


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